• Imagen 1 STEVE JOBS, AS COISAS QUE NINGUÉM DIZ
    Quão honestamente a sua vida é avaliada.

Eternos chapa-branca


Por Mino Carta

O jornal O Globo toma as dores da revista Veja e de seu patrão na edição de terça 8, e determina: “Roberto Civita não é Rupert Murdoch”. Em cena, o espírito corporativo. Manda a tradição do jornalismo pátrio, fiel do pensamento único diante de qualquer risco de mudança.
Desde 2002, todos empenhados em criar problemas para o governo do metalúrgico desabusado e, de dois anos para cá, para a burguesa que lá pelas tantas pegou em armas contra a ditadura, embora nunca as tenha usado. Os barões midiáticos detestam-se cordialmente uns aos outros, mas a ameaça comum, ou o simples temor de que se manifeste, os leva a se unir, automática e compactamente.
Não há necessidade de uma convocação explícita, o toque do alerta alcança com exclusividade os seus ouvidos interiores enquanto ninguém mais o escuta. E entra na liça o jornal da família Marinho para acusar quem acusa o parceiro de jornada, o qual, comovido, transforma o texto global na sua própria peça de defesa, desfraldada no site de Veja. A CPI do Cachoeira em potência encerra perigos em primeiro lugar para a Editora Abril. Nem por isso os demais da mídia nativa estão a salvo, o mal de um pode ser de todos.

O autor do editorial
exibe a tranquilidade de Pitágoras na hora de resolver seu teorema, na certeza de ter demolido com sua pena (imortal?) os argumentos de CartaCapital. Arrisca-se, porém, igual a Rui Falcão, de quem se apressa a citar a frase sobre a CPI, vista como a oportunidade “de desmascarar o mensalão”. Com notável candura evoca o Caso Watergate para justificar o chefe da sucursal de Veja em Brasília nas suas notórias andanças com o chefão goiano. Ambos desastrados, o editorialista e o líder petista.
Abalo-me a observar que a semanal abriliana em nada se parece com o Washington Post, bem como Roberto Civita com Katharine Graham, dona, à época de Watergate, do extraordinário diário da capital americana. Poupo os leitores e os meus pacientes botões de comparações entre a mídia dos Estados Unidos e a do Brasil, mas não deixo de acentuar a abissal diferença entre o diretor de Veja e Ben Bradlee, diretor do Washington Post, e entre Policarpo Jr. e Bob Woodward e Carl Bernstein, autores da série que obrigou Richard Nixon a se demitir antes de sofrer o inevitável impeachment. E ainda entre o Garganta Profunda, agente graduado do FBI, e um bicheiro mafioso.
Recomenda-se um mínimo de apego à verdade factual e ao espírito crítico, embora seja do conhecimento até do mundo mineral a clamorosa ignorância das redações nativas. Vale dizer, de todo modo, que, para não perder o vezo, o editorialista global esquece, entre outras façanhas de Veja, aquele épico momento em que a revista publica o dossiê fornecido por Daniel Dantas sobre as contas no exterior de alguns figurões da República, a começar pelo presidente Lula.

Concentro-me em outras miopias de O Globo. Sem citar CartaCapital, o jornal a inclui entre “os veículos de imprensa chapa-branca, que atuam como linha auxiliar dos setores radicais do PT”. Anotação marginal: os radicais do PT são hoje em dia tão comuns quanto os brontossauros. Talvez fossem anacrônicos nos seus tempos de plena exposição, hoje em dia mudaram de ideia ou sumiram de vez. Há tempo CartaCapital lamenta que o PT tenha assumido no poder as feições dos demais partidos.
Vamos, de todo modo, à vezeira acusação de que somos chapa-branca. Apenas e tão somente porque entendemos que os governos do presidente Lula e da presidenta Dilma são muito mais confiáveis do que seus antecessores? Chapa-branca é a mídia nativa e O Globo cumpre a tarefa com diligência vetusta e comovedora, destaque na opção pelos interesses dos herdeiros da casa-grande, empenhados em manter de pé a senzala até o derradeiro instante possível.
Não é por acaso que 64% dos brasileiros não dispõem de saneamento básico e que 50 mil morrem assassinados anualmente. Ou que os nossos índices de ensino e saúde públicos são dignos dos fundões da África, a par da magnífica colocação do País entre aqueles que pior distribuem a renda. Em compensação, a minoria privilegiada imita a vida dos emires árabes.







Chapa-branca a favor
de quem, impávidos senhores da prepotência, da velhacaria, da arrogância, da incompetência, da hipocrisia? Arauto da ditadura, Roberto Marinho fermentou seu poder à sombra dela e fez das Organizações Globo um monstro que assola o Brazil-zil-zil. Seu jornal apoiou o golpe, o golpe dentro do golpe, a repressão feroz. Illo tempore, seu grande amigo chamava-se Armando Falcão.
Opositor ferrenho das Diretas Já, rejubilado pelo fracasso da Emenda Dante de Oliveira, seu grande amigo passou a atender pelo nome de Antonio Carlos Magalhães. O doutor Roberto em pessoa manipulou o célebre debate Lula versus Collor, para opor-se a este dois anos depois, cobrador, o presidente caçador de marajás, de pedágios exorbitantes, quando já não havia como segurá-lo depois das claras, circunstanciadas denúncias do motorista Eriberto, publicadas pela revista IstoÉ, dirigida então pelo acima assinado.
Pronta às loas mais desbragadas a Fernando Henrique presidente, com o aval de ACM, a Globo sustentou a reeleição comprada e a privataria tucana, e resistiu à própria falência do País no começo de 1999, após ter apoiado a candidatura de FHC na qualidade de defensor da estabilidade. Não lhe faltaram compensações. Endividada até o chapéu, teve o presente de 800 milhões de reais do BNDES do senhor Reichstul. Haja chapa-branca.
Impossível a comparação entre a chamada “grande imprensa” (eu a enxergo mínima) e o que chama de “linha auxiliar de setores radicais do PT”, conforme definem as primeiras linhas do editorial de O Globo. A questão, de verdade, é muito simples: há jornalismo e jornalismo. Ao contrário destes “grandes”, nós entendemos que a liberdade sozinha, sem o acompanhamento pontual da igualdade, é apenas a do mais forte, ou, se quiserem, do mais rico. É a liberdade do rei leão no coração da selva, seguido a conveniente distância por sua corte de hienas.
Acreditamos também que entregue à propaganda da linha auxiliar da casa-grande, o Brasil não chegaria a ser o País que ele mesmo e sua nação merecem. Nunca me canso de repetir Raymundo Faoro: “Eles querem um País de 20 milhões de habitantes e uma democracia sem povo”. No mais, sobra a evidência: Roberto Civita é o Murdoch que este país pode se permitir, além de inventor da lâmpada Skuromatic a convocar as trevas ao meio-dia. Temos de convir que, na mídia brasileira, abundam os usuários deste milagroso objeto.

CartaCapital

Os cevadores de trolls



No livro “You Are Not a Gadget” (“Você não é um aplicativo”, editora Saraiva), lançado ano passado, o americano Jaron Lanier, um dos pioneiros da realidade virtual, adverte e lamenta que a internet esteja servindo para libertar o “troll interior” que todos carregamos.

Quando um colunista escreve que homofobia não é crime, não é porque ele respeita o direito de alguém não gostar de homossexuais. O que ele quer é angariar notoriedade mesmo que isso custe incentivar o preconceito contra os gays

Nós, seres cordatos e decentes na vida em sociedade, estaríamos sendo tentados pelo anonimato da rede a confessar em blogs e fóruns nossos pensamentos e preconceitos mais sórdidos. Uma espécie de Médico e o Monstro virtual cuja poção capaz de liberar o lado escuro é a certeza de que ninguém saberá que somos capazes de pensar aquelas coisas –além, claro, de evitar processos judiciais.

Lanier defende o fim dos comentários apócrifos, sem a identidade de seus autores, mas antes de tudo dá alguns conselhos às pessoas em geral para resistirem à sedução da trollagem. A primeira e mais importante delas é: nunca poste anonimamente a não ser que, se você se identificar, corra algum perigo. É um conselho muito bacana, mas ele esqueceu ou não quis se dirigir também aos trolls que estão detrás das telas destes trollzinhos, com colunas opinativas impressas ou em vídeo, instigando estes pensamentos e preconceitos sórdidos. Cevando os trolls interiores.

Foi-se o tempo em que recebíamos correntes de e-mails com artigos edificantes ou engraçados. Era até chato, eu sei, mas já comecei a sentir saudade, juro. Sobretudo de quando a leitura de uma coluna mexia comigo, quando era capaz de me fazer concordar, discordar ou até me fazer mudar de opinião sobre um assunto. Felizmente ainda há exceções, mas hoje alguns colunistas só conseguem me causar indignação. O que no passado era conhecido como “polemista” se transformou num criador de casos banal, tipo aquele bêbado do bar da esquina que provoca todo mundo. Na vida real, o bêbado iria causar repulsa nos frequentadores do boteco. No mundo virtual, arrasta um monte de gente atrás dele, rindo e replicando suas asneiras.

O cevador de troll é mais perigoso do que o troll, porque, alimentando-os, os multiplica. Quando um colunista escreve que homofobia não é crime, não é porque ele respeita o direito de alguém não gostar de homossexuais. O que ele quer é angariar notoriedade mesmo que isso custe incentivar o preconceito contra os gays e consequentemente os trolls da rede, que são atraídos por estes textos que nem moscas. Quando um articulista chama uma senadora de “primeira-dama das estrebarias” está, sim, chamando: ti, ti, ti, venham, trollzinhos, que aqui tem alpiste.

Quando alguém com meia página num jornal diz que detesta classes emergentes, dá razão ao troll mais mesquinho e o incentiva a ir em frente. Come, trollzinho, pra ficar gordinho. Saciado, o troll deve pensar: “Nossa, é legal pensar desse jeito. Se eu continuar assim, um dia vou conseguir trabalho num jornal ou revista importante”. Ou: “O segredo do sucesso é sempre dizer o que se pensa, mesmo que isso seja nojento”. Nham, nham. Arf.

Esqueça todas aquelas condenações que leu na imprensa aos internautas capazes de tripudiar sobre a doença de um ex-presidente. Elas não passam de uma tentativa de maquiar com as tintas da civilidade o fato de que estas criaturas horrendas possuem um criador. Alguém que lhes dá de comer na boquinha, que os estimula a crescer, a se encorajar, a não se reprimir. Os cevadores de trolls estão todos bem empregados, não vai lhes faltar emprego. Alimentar monstrinhos atrai leitores. E eleitores.


Cynara Menezes - CartaCapital

Laranjas cortadas não param em em pé


 - As razões pelas quais o Brasil precisa de um novo modelo de polícia -

As recentes greves e mobilizações de policiais em vários Estados são um reflexo tardio de uma crise profunda que ultrapassa em muito as reivindicações salariais. Para se compreender a natureza dos fenômenos em curso, é preciso, primeiramente, observar que as duas polícias que atuam nos Estados (Civil e Militar) possuem suas origens respectivas em “campos” (no sentido de Bourdieu) determinados – que não representam especificamente os desafios da segurança pública: as Polícias Civis emergiram do campo do Direito, e as Polícias Militares, do campo da Defesa. Suas origens remontam à criação, em 1808, da Intendência Geral de Polícia da Corte e, um ano após, da Guarda Real da Polícia da Corte, por Dom João VI.

Essas estruturas, é oportuno lembrar, não surgiram para o enfrentamento das dinâmicas criminais ou para a garantia dos direitos da cidadania, mas – como ocorreu também na grande maioria dos Estados modernos – para atender à ne- cessidade de contenção de distúrbios so- ciais antes enfrentados diretamente pelas Forças Armadas. Por conta desse perten- cimento original, as instituições policiais foram “mimetizando” os campos da Defe- sa e da Justiça. Assim, durante muito tem- po, as polícias estaduais atuaram como se exércitos fossem. A Força Pública de São Paulo contou com artilharia aérea e esteve envolvida em conflitos em vários Estados. Em 1905, essa polícia contratou a Missão Francesa, recebendo dela instrução mi- litar, 12 anos antes do Exército. Em 1932, travou guerra contra o Exército, disputa que Getúlio Vargas só venceu por contar com o apoio da polícia mineira. Isso esti- mulou a Constituição de 1934 a declarar as forças públicas estaduais como “forças auxiliares e de reserva do Exército”, dispo- sição que permanece até hoje.

De outra parte, as polícias civis trans formam-se em “filtros” do Poder Judiciá rio, selecionando os fatos que mereceriam apreciação dos magistrados. De novo, a força mimética, com o inquérito policial operando como um “pré-processo” penal, em que se forma a culpa sem as garantias do contraditório e da ampla defesa – em desrespeito, portanto, à ordem igualitária que segue sendo declarada pela lei, mas violada pelo modelo. O inquérito policial, assinale-se, é outra característica do nosso modelo que se afasta da experiência inter nacional e que é, sabidamente, contrapro ducente.

Praças das PMs identificam no espelha mento de sua corporação com as Forças Armadas um dos problemas mais sérios da instituição. A maioria deles, inclusive, desejaria uma polícia desmilitarizada. Já a maioria dos oficiais preza o reflexo e atri bui destacada importância às noções de disciplina e hierarquia típicas do Exército. De outra parte, os integrantes das carreiras iniciais das PCs não se identificam como “operadores do Direito”; o que demarca uma diferença plena de repercussões com a autoimagem dos delegados, bacharéis em Direito, que lutam pela equiparação funcio nal com as chamadas “carreiras jurídicas”.

Importa perceber, então, que – em contraste com as nações modernas – os esforços pela “policialização” das polícias (conforme a expressão de Karnikowski) e pela formação de um “campo da segurança pública” ainda não foram concluídos no Brasil. Como assinala Mateus Afonso Medeiros, “está incompleta a conquista democrática da separação institucional Polícia-Justiça e Polícia-Exército”.

O que há de mais notável no modelo de polícia construído no Brasil, entretan to, deriva da opção pela repartição do ci clo de policiamento. A instituição policial moderna em todo o mundo desempenha suas funções a partir do que se denomi na “Ciclo Completo de Policiamento”; em outras palavras: as polícias modernas são instituições profissionais cujo man dato envolve as tarefas de 1) manutenção da paz pública, 2) garantia dos direitos Lucio TAvorA, AP Exército interveio durante a greve de policiais militares em Salvador, na Bahia, em janeiro RefeRências KARNIKOWSKI, Romeu Machado. De Exército Estadual à Polícia-Militar: o papel dos oficiais na policialização da Brigada Militar (1892 – 1988). Porto Alegre; Tese de Doutorado: Sociologia, UFRGS, 2010. MEDEIROS, Mateus Afonso. Aspectos Institucionais da Unificação das Polícias no Brasil. DADOS – Revista de Ciências Sociais, Rio de Janeiro, Vol. 47, no 2 : 271- 296; 2004. MINAYO, Maria Cecília de Souza; SOUZA, Edinilsa Ramos e CONSTANTINO, Patrícia. Riscos percebidos e vitimização de policiais civis e militares na (in)segurança pública. Cad. Saúde Pública, Rio de Janeiro, 23(11): 2767 2779, 2007. RAMOS, Sílvia. ROLIM, Marcos e SOARES, Luiz Eduardo. O que pensam os profissionais da segurança pública, no Brasil. Ministério da Justiça/SENASP/PNUD. Relatório de pesquisa. 2009. Por MARCOS ROLIM Professor da cátedra de Direitos Humanos do IPA, autor de “A Síndrome da Rainha Vermelha” (Zahar/Oxford University, 2006) elementares da cidadania, 3) prevenção do crime e 4) apuração das responsabili dades penais. Mas, no Brasil, se entendeu que uma das polícias – a Militar – seria encarregada da “prevenção”, pela presen ça ostensiva do patrulhamento fardado e outra – a Civil – seria encarregada da in vestigação criminal. Assim, a especializa ção entre patrulheiros e investigadores, em todo o mundo feita dentro das polícias, foi aqui dividida entre duas instituições com culturas e estruturas completamente dis tintas. O resultado é que nunca tivemos duas polícias nos Estados, mas duas “me tades de polícia”, cada uma responsável por metade do ciclo de policiamento.

A bipartição do ciclo impede que os policiais encarregados da investigação tenham acesso às informações coletadas pelos patrulheiros. Sem profissionais no policiamento ostensivo, as Polícias Civis não podem contar com um competente sistema de coleta de informações. Não por outra razão, recorrem com tanta frequên cia aos “informantes” – quase sempre pes soas que mantêm ligações com o mundo do crime, condição que empresta à inves tigação limitações estruturais e, com fre quência, dilemas éticos de difícil solução. As Polícias Militares, por seu turno, impe didas de apurar responsabilidades criminais, não conseguem atuar efetivamente na prevenção, vez que a ostensividade – ao contrário do que imagina o senso comum – não previne a ocorrência do crime, mas o desloca (potenciais infratores não costu mam praticar delitos na presença de po liciais; mas não mudam de ideia, mudam de local).

Patrulhamento e investigação são, na verdade, faces de um mesmo trabalho que deve integrar as fases do planejamento da ação policial, desde o diagnóstico das tendências criminais até a formulação de planos de ação, monitoramento e avalia ção de resultados. No Brasil, isso se tornou inviável. Mas, como laranjas cortadas ao meio não permanecem em pé, as polícias intuem que precisam do ciclo completo (da outra metade). Por isso, historica mente, ambas procuram incorporar as “prerrogativas de função” que lhes faltam, o que tem estimulado a conhecida e dis funcional hostilidade entre elas, traduzida pela ausência de colaboração e, não raro, por iniciativas de boicote. Não satisfeito com a bipartição do ciclo, nosso mode lo de polícia – também de forma inédita – ainda estabeleceu diferentes “portas de entrada” para cada polícia, o que gerou no vo “corte” – agora horizontal – dentro das corporações: nas PMs temos duas partes, oficiais e não oficiais, e nas PCs, delegados e não delegados. Entre estas “partes” de polícia há um abismo de prestígio, poder, formação e remuneração que é, cada vez mais, insuportável. A ausência de carreira única em cada polícia, com efeito, inviabiliza a instituição policial brasileira, porque reafirma a desigualdade, estimula o auto ritarismo e consagra privilégios; promo vendo, muito compreensivelmente, uma “guerra” não declarada dentro das corpo rações. Também por isto, nossas polícias não conseguem completar seus efetivos e parcelas expressivas de policiais apenas aguardam oportunidade para deixar suas instituições. O problema da evasão, é cla ro, vincula-se também aos baixos salários. Esta realidade, por sua vez, agencia outras distorções, entre elas o “bico” e a forma tação de jornadas absolutamente irracio nais para a lógica do serviço público, mas funcionais para a prevalência do segundo emprego. Assim, por exemplo, jornadas de 24 por 72 horas (ou seja: plantões de 24h seguidos por três dias de folga) tornaram se comuns nas polícias civis no Brasil, ofe recendo exemplo de como se impedir que uma instituição funcione minimamente.

Policiais com um segundo emprego, entretanto, assumem vários riscos. Um estudo de Maria Cecília de Souza Minayo e Edinilsa Ramos Souza revelou que, dos Patrulhamento e investigação são faces de um mesmo trabalho que deve integrar as fases do planejamento da ação policial. No Brasil, isso se tornou inviável • cultura 7 SÁBADO, 25 DE FEVEREIRO DE 2012 4.518 policiais mortos e feridos por to das as causas, de 2000 a 2004, no Estado do RJ, 56,1% foram vitimados durante as folgas. O “bico”, entretanto, é só a ponta de um iceberg de distorções que tendem a se avolumar e cujo desfecho aponta para a formação das milícias – de longe o mais sério problema de segurança pública em alguns Estados, com destaque para o Rio.

Mas a violência sofrida pelos policiais não lhes ameaça apenas desde o “exterior”. O amplo estudo que realizamos com Silvia Ramos e Luiz Eduardo Soares (disponível em http://bit.ly/x4PWnf) chamou atenção para o fato de que parte expressiva da vio lência sofrida pelos profissionais da segu rança pública ocorre no interior das suas corporações. Assim, por exemplo, 20% dos policiais brasileiros são vítimas de tortura em seus processos de “formação”; 53,9% deles já foram humilhados pelos superio res hierárquicos e mais de um quarto dos policiais entende que sua corporação já lhes negou ou cerceou o direito de defesa. Além disso, 61,1% deles afirmaram já te rem sofrido tratamentos discriminatórios pelo fato de serem policiais civis ou mili tares, bombeiros, guardas municipais ou agentes penitenciários e pelo menos 16% das mulheres que atuam nestas institui ções já foram vítimas de assédio sexual em suas corporações.

Desrespeitados como cidadãos, obriga dos a um cotidiano embrutecedor e sem qualquer apoio psicossocial, desvaloriza dos profissionalmente, desestimulados ao estudo e à reflexão e, não raro, “adestrados” pelo autoritarismo, estes policiais irão pa ra as ruas nas piores condições, tendendo a reproduzir a mesma desconsideração em suas relações com o público, destaca damente quando tratarem com pobres e marginalizados. O círculo de estupidez e ineficiência, então, se completa com os re sultados conhecidos.

No passado, alguns dos críticos do mo delo levantaram a bandeira da unificação das polícias. Uma sugestão plena de boas intenções, mas completamente equivoca da. Múltiplas estruturas de policiamento conformam uma das características mais importantes dos modelos contemporâne os de segurança pública na grande maio ria dos países democráticos. Inglaterra e País de Gales possuem 43 forças policiais autônomas; a Noruega possui 54 polícias distritais; a Escócia, oito polícias regionais; os Estados Unidos possuem pelo me nos 25 mil polícias autônomas; a Bélgica, 2.359; o Canadá tem 450 polícias munici pais, além de várias forças provinciais e da Royal Canadian Mounted Police. Poucas nações possuem polícia única (Sri Lanka, Cingapura, Polônia, Irlanda e Israel). Polí cias menores são mais facilmente admi nistradas e avaliadas. São também mais ágeis e tendem à especialização. Institui ções policiais enormes, pelo contrário, são de difícil manejo e supervisão. Também por isso, eventual unificação das polícias no Brasil tenderia a somar os defeitos das instituições que temos, subtraindo suas virtudes. Por fim, a unificação agregaria risco considerável à democracia, incluindo a possibilidade de “emparedamento” do Estado por demandas corporativas.

O caminho da reforma, pelo contrário, deve estimular o surgimento de novas ins tituições policiais, além de integral autono mia aos Bombeiros e às perícias; tendência que – apesar dos limites constitucionais – já se impõe no Brasil que formou uma Guarda Nacional e cujos municípios têm constituído Agências de Fiscalização de Trânsito e Guardas Municipais (que, em bora sem este nome, polícias são). O fun damental é que todas elas tenham o ciclo completo de policiamento (o que no Brasil só a Polícia Federal possui) e carreiras úni cas (uma única porta de entrada em cada polícia) como no resto do mundo. Esta é a base para que possamos ter polícias efi cazes e para que as noções de segurança sejam fundadas em evidências científicas e não na cultura institucional do atraso e do preconceito. Este é também o caminho para que tenhamos polícias comunitárias acostumadas ao controle social e aos pro cessos de prestação de contas e responsa bilização pública (accountability).

Para que a existência de várias polícias com ciclo completo não seja redundante e não implique novas disputas, deve-se optar por um dos seguintes caminhos: ou se estabelece uma base distrital para cada polícia (modelo britânico) ou definimos responsabilidades distintas para as polí cias de acordo com tipos criminais (o que caracteriza, em grande parte, a experiên cia americana). Tendo presente a história centenária das polícias militares e civis no Brasil, seria de todo desaconselhável que elas fossem reorganizadas para atuar a partir de bases distritais exclusivas. O mais adequado seria a divisão de vocações por tipos penais. Assim, por exemplo, as Polí cias Civis poderiam tratar de crimes contra a vida, sequestros, crimes sexuais, tráfico de drogas e crimes do “colarinho branco”, enquanto as Polícias Militares poderiam cuidar dos delitos patrimoniais (furtos e roubos) e da manutenção da paz pública. Em um sistema do tipo, as Guardas Muni cipais poderiam responder aos conflitos de “baixa densidade” como arruaça, vandalis mo, disputas entre vizinhos, importunação ao sossego, violência doméstica etc. Uma divisão do tipo tornaria possível que tivés semos um sistema de segurança pública no Brasil, encerrando a pré-história das polícias brasileiras.

Reformas desta natureza exigem, por óbvio, um amplo esforço político, vez que nosso modelo de polícia foi, inacreditavel mente, inserido na Consti tuição Federal, notadamente em seu art. 144. Tendo em conta a destacada inaptidão do Congresso Nacional pa ra reformar o que quer que seja e o notório desinteresse do governo federal sobre es te tema, deve-se reconhecer que as perspectivas não são alentadoras. Os governa dores poderiam constituir esta agenda. Afinal, é nos Estados que a crise se insta la e – observados princípios gerais – se deveria permitir margem de autonomia aos entes da federação para que pudessem reformar e/ou instituir su as próprias polícias. Seja como for, nunca a crise do modelo de polícia no Brasil foi tão evidente. O que não nos garante qualquer solução. Afinal, convivemos com uma rea lidade política na qual tem sido preferível não pensar, não discutir e não fazer. Só por isso, as greves e protestos dos policiais têm um sentido histórico. Em seus acertos e em seus erros, as mobilizações introdu ziram um dado novo: os policiais exigem mudanças. Resta saber se alguém saberá interpretar este sentimento.

Marcos Rolim

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