• Imagen 1 STEVE JOBS, AS COISAS QUE NINGUÉM DIZ
    Quão honestamente a sua vida é avaliada.

Laranjas cortadas não param em em pé


 - As razões pelas quais o Brasil precisa de um novo modelo de polícia -

As recentes greves e mobilizações de policiais em vários Estados são um reflexo tardio de uma crise profunda que ultrapassa em muito as reivindicações salariais. Para se compreender a natureza dos fenômenos em curso, é preciso, primeiramente, observar que as duas polícias que atuam nos Estados (Civil e Militar) possuem suas origens respectivas em “campos” (no sentido de Bourdieu) determinados – que não representam especificamente os desafios da segurança pública: as Polícias Civis emergiram do campo do Direito, e as Polícias Militares, do campo da Defesa. Suas origens remontam à criação, em 1808, da Intendência Geral de Polícia da Corte e, um ano após, da Guarda Real da Polícia da Corte, por Dom João VI.

Essas estruturas, é oportuno lembrar, não surgiram para o enfrentamento das dinâmicas criminais ou para a garantia dos direitos da cidadania, mas – como ocorreu também na grande maioria dos Estados modernos – para atender à ne- cessidade de contenção de distúrbios so- ciais antes enfrentados diretamente pelas Forças Armadas. Por conta desse perten- cimento original, as instituições policiais foram “mimetizando” os campos da Defe- sa e da Justiça. Assim, durante muito tem- po, as polícias estaduais atuaram como se exércitos fossem. A Força Pública de São Paulo contou com artilharia aérea e esteve envolvida em conflitos em vários Estados. Em 1905, essa polícia contratou a Missão Francesa, recebendo dela instrução mi- litar, 12 anos antes do Exército. Em 1932, travou guerra contra o Exército, disputa que Getúlio Vargas só venceu por contar com o apoio da polícia mineira. Isso esti- mulou a Constituição de 1934 a declarar as forças públicas estaduais como “forças auxiliares e de reserva do Exército”, dispo- sição que permanece até hoje.

De outra parte, as polícias civis trans formam-se em “filtros” do Poder Judiciá rio, selecionando os fatos que mereceriam apreciação dos magistrados. De novo, a força mimética, com o inquérito policial operando como um “pré-processo” penal, em que se forma a culpa sem as garantias do contraditório e da ampla defesa – em desrespeito, portanto, à ordem igualitária que segue sendo declarada pela lei, mas violada pelo modelo. O inquérito policial, assinale-se, é outra característica do nosso modelo que se afasta da experiência inter nacional e que é, sabidamente, contrapro ducente.

Praças das PMs identificam no espelha mento de sua corporação com as Forças Armadas um dos problemas mais sérios da instituição. A maioria deles, inclusive, desejaria uma polícia desmilitarizada. Já a maioria dos oficiais preza o reflexo e atri bui destacada importância às noções de disciplina e hierarquia típicas do Exército. De outra parte, os integrantes das carreiras iniciais das PCs não se identificam como “operadores do Direito”; o que demarca uma diferença plena de repercussões com a autoimagem dos delegados, bacharéis em Direito, que lutam pela equiparação funcio nal com as chamadas “carreiras jurídicas”.

Importa perceber, então, que – em contraste com as nações modernas – os esforços pela “policialização” das polícias (conforme a expressão de Karnikowski) e pela formação de um “campo da segurança pública” ainda não foram concluídos no Brasil. Como assinala Mateus Afonso Medeiros, “está incompleta a conquista democrática da separação institucional Polícia-Justiça e Polícia-Exército”.

O que há de mais notável no modelo de polícia construído no Brasil, entretan to, deriva da opção pela repartição do ci clo de policiamento. A instituição policial moderna em todo o mundo desempenha suas funções a partir do que se denomi na “Ciclo Completo de Policiamento”; em outras palavras: as polícias modernas são instituições profissionais cujo man dato envolve as tarefas de 1) manutenção da paz pública, 2) garantia dos direitos Lucio TAvorA, AP Exército interveio durante a greve de policiais militares em Salvador, na Bahia, em janeiro RefeRências KARNIKOWSKI, Romeu Machado. De Exército Estadual à Polícia-Militar: o papel dos oficiais na policialização da Brigada Militar (1892 – 1988). Porto Alegre; Tese de Doutorado: Sociologia, UFRGS, 2010. MEDEIROS, Mateus Afonso. Aspectos Institucionais da Unificação das Polícias no Brasil. DADOS – Revista de Ciências Sociais, Rio de Janeiro, Vol. 47, no 2 : 271- 296; 2004. MINAYO, Maria Cecília de Souza; SOUZA, Edinilsa Ramos e CONSTANTINO, Patrícia. Riscos percebidos e vitimização de policiais civis e militares na (in)segurança pública. Cad. Saúde Pública, Rio de Janeiro, 23(11): 2767 2779, 2007. RAMOS, Sílvia. ROLIM, Marcos e SOARES, Luiz Eduardo. O que pensam os profissionais da segurança pública, no Brasil. Ministério da Justiça/SENASP/PNUD. Relatório de pesquisa. 2009. Por MARCOS ROLIM Professor da cátedra de Direitos Humanos do IPA, autor de “A Síndrome da Rainha Vermelha” (Zahar/Oxford University, 2006) elementares da cidadania, 3) prevenção do crime e 4) apuração das responsabili dades penais. Mas, no Brasil, se entendeu que uma das polícias – a Militar – seria encarregada da “prevenção”, pela presen ça ostensiva do patrulhamento fardado e outra – a Civil – seria encarregada da in vestigação criminal. Assim, a especializa ção entre patrulheiros e investigadores, em todo o mundo feita dentro das polícias, foi aqui dividida entre duas instituições com culturas e estruturas completamente dis tintas. O resultado é que nunca tivemos duas polícias nos Estados, mas duas “me tades de polícia”, cada uma responsável por metade do ciclo de policiamento.

A bipartição do ciclo impede que os policiais encarregados da investigação tenham acesso às informações coletadas pelos patrulheiros. Sem profissionais no policiamento ostensivo, as Polícias Civis não podem contar com um competente sistema de coleta de informações. Não por outra razão, recorrem com tanta frequên cia aos “informantes” – quase sempre pes soas que mantêm ligações com o mundo do crime, condição que empresta à inves tigação limitações estruturais e, com fre quência, dilemas éticos de difícil solução. As Polícias Militares, por seu turno, impe didas de apurar responsabilidades criminais, não conseguem atuar efetivamente na prevenção, vez que a ostensividade – ao contrário do que imagina o senso comum – não previne a ocorrência do crime, mas o desloca (potenciais infratores não costu mam praticar delitos na presença de po liciais; mas não mudam de ideia, mudam de local).

Patrulhamento e investigação são, na verdade, faces de um mesmo trabalho que deve integrar as fases do planejamento da ação policial, desde o diagnóstico das tendências criminais até a formulação de planos de ação, monitoramento e avalia ção de resultados. No Brasil, isso se tornou inviável. Mas, como laranjas cortadas ao meio não permanecem em pé, as polícias intuem que precisam do ciclo completo (da outra metade). Por isso, historica mente, ambas procuram incorporar as “prerrogativas de função” que lhes faltam, o que tem estimulado a conhecida e dis funcional hostilidade entre elas, traduzida pela ausência de colaboração e, não raro, por iniciativas de boicote. Não satisfeito com a bipartição do ciclo, nosso mode lo de polícia – também de forma inédita – ainda estabeleceu diferentes “portas de entrada” para cada polícia, o que gerou no vo “corte” – agora horizontal – dentro das corporações: nas PMs temos duas partes, oficiais e não oficiais, e nas PCs, delegados e não delegados. Entre estas “partes” de polícia há um abismo de prestígio, poder, formação e remuneração que é, cada vez mais, insuportável. A ausência de carreira única em cada polícia, com efeito, inviabiliza a instituição policial brasileira, porque reafirma a desigualdade, estimula o auto ritarismo e consagra privilégios; promo vendo, muito compreensivelmente, uma “guerra” não declarada dentro das corpo rações. Também por isto, nossas polícias não conseguem completar seus efetivos e parcelas expressivas de policiais apenas aguardam oportunidade para deixar suas instituições. O problema da evasão, é cla ro, vincula-se também aos baixos salários. Esta realidade, por sua vez, agencia outras distorções, entre elas o “bico” e a forma tação de jornadas absolutamente irracio nais para a lógica do serviço público, mas funcionais para a prevalência do segundo emprego. Assim, por exemplo, jornadas de 24 por 72 horas (ou seja: plantões de 24h seguidos por três dias de folga) tornaram se comuns nas polícias civis no Brasil, ofe recendo exemplo de como se impedir que uma instituição funcione minimamente.

Policiais com um segundo emprego, entretanto, assumem vários riscos. Um estudo de Maria Cecília de Souza Minayo e Edinilsa Ramos Souza revelou que, dos Patrulhamento e investigação são faces de um mesmo trabalho que deve integrar as fases do planejamento da ação policial. No Brasil, isso se tornou inviável • cultura 7 SÁBADO, 25 DE FEVEREIRO DE 2012 4.518 policiais mortos e feridos por to das as causas, de 2000 a 2004, no Estado do RJ, 56,1% foram vitimados durante as folgas. O “bico”, entretanto, é só a ponta de um iceberg de distorções que tendem a se avolumar e cujo desfecho aponta para a formação das milícias – de longe o mais sério problema de segurança pública em alguns Estados, com destaque para o Rio.

Mas a violência sofrida pelos policiais não lhes ameaça apenas desde o “exterior”. O amplo estudo que realizamos com Silvia Ramos e Luiz Eduardo Soares (disponível em http://bit.ly/x4PWnf) chamou atenção para o fato de que parte expressiva da vio lência sofrida pelos profissionais da segu rança pública ocorre no interior das suas corporações. Assim, por exemplo, 20% dos policiais brasileiros são vítimas de tortura em seus processos de “formação”; 53,9% deles já foram humilhados pelos superio res hierárquicos e mais de um quarto dos policiais entende que sua corporação já lhes negou ou cerceou o direito de defesa. Além disso, 61,1% deles afirmaram já te rem sofrido tratamentos discriminatórios pelo fato de serem policiais civis ou mili tares, bombeiros, guardas municipais ou agentes penitenciários e pelo menos 16% das mulheres que atuam nestas institui ções já foram vítimas de assédio sexual em suas corporações.

Desrespeitados como cidadãos, obriga dos a um cotidiano embrutecedor e sem qualquer apoio psicossocial, desvaloriza dos profissionalmente, desestimulados ao estudo e à reflexão e, não raro, “adestrados” pelo autoritarismo, estes policiais irão pa ra as ruas nas piores condições, tendendo a reproduzir a mesma desconsideração em suas relações com o público, destaca damente quando tratarem com pobres e marginalizados. O círculo de estupidez e ineficiência, então, se completa com os re sultados conhecidos.

No passado, alguns dos críticos do mo delo levantaram a bandeira da unificação das polícias. Uma sugestão plena de boas intenções, mas completamente equivoca da. Múltiplas estruturas de policiamento conformam uma das características mais importantes dos modelos contemporâne os de segurança pública na grande maio ria dos países democráticos. Inglaterra e País de Gales possuem 43 forças policiais autônomas; a Noruega possui 54 polícias distritais; a Escócia, oito polícias regionais; os Estados Unidos possuem pelo me nos 25 mil polícias autônomas; a Bélgica, 2.359; o Canadá tem 450 polícias munici pais, além de várias forças provinciais e da Royal Canadian Mounted Police. Poucas nações possuem polícia única (Sri Lanka, Cingapura, Polônia, Irlanda e Israel). Polí cias menores são mais facilmente admi nistradas e avaliadas. São também mais ágeis e tendem à especialização. Institui ções policiais enormes, pelo contrário, são de difícil manejo e supervisão. Também por isso, eventual unificação das polícias no Brasil tenderia a somar os defeitos das instituições que temos, subtraindo suas virtudes. Por fim, a unificação agregaria risco considerável à democracia, incluindo a possibilidade de “emparedamento” do Estado por demandas corporativas.

O caminho da reforma, pelo contrário, deve estimular o surgimento de novas ins tituições policiais, além de integral autono mia aos Bombeiros e às perícias; tendência que – apesar dos limites constitucionais – já se impõe no Brasil que formou uma Guarda Nacional e cujos municípios têm constituído Agências de Fiscalização de Trânsito e Guardas Municipais (que, em bora sem este nome, polícias são). O fun damental é que todas elas tenham o ciclo completo de policiamento (o que no Brasil só a Polícia Federal possui) e carreiras úni cas (uma única porta de entrada em cada polícia) como no resto do mundo. Esta é a base para que possamos ter polícias efi cazes e para que as noções de segurança sejam fundadas em evidências científicas e não na cultura institucional do atraso e do preconceito. Este é também o caminho para que tenhamos polícias comunitárias acostumadas ao controle social e aos pro cessos de prestação de contas e responsa bilização pública (accountability).

Para que a existência de várias polícias com ciclo completo não seja redundante e não implique novas disputas, deve-se optar por um dos seguintes caminhos: ou se estabelece uma base distrital para cada polícia (modelo britânico) ou definimos responsabilidades distintas para as polí cias de acordo com tipos criminais (o que caracteriza, em grande parte, a experiên cia americana). Tendo presente a história centenária das polícias militares e civis no Brasil, seria de todo desaconselhável que elas fossem reorganizadas para atuar a partir de bases distritais exclusivas. O mais adequado seria a divisão de vocações por tipos penais. Assim, por exemplo, as Polí cias Civis poderiam tratar de crimes contra a vida, sequestros, crimes sexuais, tráfico de drogas e crimes do “colarinho branco”, enquanto as Polícias Militares poderiam cuidar dos delitos patrimoniais (furtos e roubos) e da manutenção da paz pública. Em um sistema do tipo, as Guardas Muni cipais poderiam responder aos conflitos de “baixa densidade” como arruaça, vandalis mo, disputas entre vizinhos, importunação ao sossego, violência doméstica etc. Uma divisão do tipo tornaria possível que tivés semos um sistema de segurança pública no Brasil, encerrando a pré-história das polícias brasileiras.

Reformas desta natureza exigem, por óbvio, um amplo esforço político, vez que nosso modelo de polícia foi, inacreditavel mente, inserido na Consti tuição Federal, notadamente em seu art. 144. Tendo em conta a destacada inaptidão do Congresso Nacional pa ra reformar o que quer que seja e o notório desinteresse do governo federal sobre es te tema, deve-se reconhecer que as perspectivas não são alentadoras. Os governa dores poderiam constituir esta agenda. Afinal, é nos Estados que a crise se insta la e – observados princípios gerais – se deveria permitir margem de autonomia aos entes da federação para que pudessem reformar e/ou instituir su as próprias polícias. Seja como for, nunca a crise do modelo de polícia no Brasil foi tão evidente. O que não nos garante qualquer solução. Afinal, convivemos com uma rea lidade política na qual tem sido preferível não pensar, não discutir e não fazer. Só por isso, as greves e protestos dos policiais têm um sentido histórico. Em seus acertos e em seus erros, as mobilizações introdu ziram um dado novo: os policiais exigem mudanças. Resta saber se alguém saberá interpretar este sentimento.

Marcos Rolim

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