Morrendo em perfeita saúde

Que me perdoem a insensibilidade, mas dispenso essa qualidade de vida e prefiro morrer doente mesmo a esticar as canelas em perfeita saúde.

Não agüento mais de culpa, acusado de suicidar-me a cada instante, por matérias de revistas e jornais, pelos amigos e por desconhecidos íntimos com que me bato aqui nas ruas do Baixo Leblon. Venho de tempos bem mais amenos. Antigamente, o sujeito acordava, tomava uma xícara de café com leite e comia um pãozinho com manteiga. Hoje, isto não é mais possível e chega mesmo a ser encarado com horror pelos mais radicais.

O café, além de poder conter substâncias ilicitamente adicionadas pelo fabricante, também causa males recentemente descobertos por um laboratório de Glasgow, ou Amsterdã ou Jacarta, que poderão deixar o freguês abestalhado, tarado, astênico ou hiperexcitável a ponto de matar a família e ir ao cinema. Leite, só desnatado e olhe lá, porque faz mal a muita gente que nem suspeita disso. Talvez a maior parte de vocês não saiba, mas muitos adultos têm intolerância ao leite e seu consumo os deixará abestalhados, tarados, astênicos, etc. Antigamente, ninguém sabia disso, de maneira que nosso avozinho podia tomar seu leite morno tranqüilamente aos 80 anos, enquanto hoje, se fizer isso, não passa dos 60. Pãozinho, nem pensar. Além dos aditivos, como o tremebundo bromato, é perigosíssimo carboidrato de farinha refinada, a ser temido como o diabo teme a cruz. E manteiga deve ser brevemente incluída nas listas de drogas proibidas, juntamente com cocaína e heroína. E uma omeletezinha? E ovos estrelados, daqueles reluzentes como o sol, que a gente encarava com requintes de esfregadinhas de pão na gema? Com presunto? Com bacon? Livrai-nos, Senhor, de todas essas pragas infernais.


Vocês se lembram do tempo da margarina? Já faz algumas décadas, mas, coincidindo com safras recordes de uma de suas matérias-primas principais, o milho, apareceram, principalmente nos Estados Unidos, onde os excedentes do milho eram colossais, centenas (ou milhares) de estudos mostrando como a margarina era muitíssimo preferível à execrável manteiga, razão por que devíamos consumi-la aos potes. Agora, não é mais assim, a margarina é cheia de aditivos químicos (aliás, é outra coisa interessante, esse negócio de químico, pois, afinal, toda matéria é química de uma forma ou de outra — água é a composição química de dois átomos de hidrogênio com um de oxigênio) e, segundo diversos, bem mais letal do que a manteiga.

E carne, meu Deus do céu? É caso de se embuçar, para ir a uma churrascaria. Outro dia, à beira do pranto, meu amigo Carlinhos Judeu apareceu no boteco com a nova dieta que seu médico lhe havia prescrito. Após cuidadoso escrutínio, todos os da mesa concluíram que a única alimentação permitida a Carlinhos, sete dias por semana, 30 dias por mês, era peito de frango com certas verduras. Quem come carne vermelha é expulso de certas mesas, como se fosse um canibal. Há quem não coma mamíferos. Deve ser porque o mamífero mamou e ficou contaminado com o maldito leite. Não se pode comer mamífero nem no Ártico, onde Brigitte Bardot recomendou aos esquimós um regime vegetariano, sendo recebida com certa perplexidade, porque indubitavelmente é bastante difícil plantar alface e repolho no Pólo Norte.

E o tempo da macrobiótica, lembram vocês? As pessoas iam a estabelecimentos de aparência lúgubre, ao som de cítaras sinistras, onde sentavam em almofadas sebosas e mastigavam 30 vezes cada bocado das estranhíssimas iguarias que eram servidas (inclusive uma certa “água descansada” que uma vez me serviram na Bahia, e morro de preocupação porque hoje em dia só bebo água cansada), para depois todo mundo sair macilento e contrito, na convicção de que em breve alcançaria o Nirvana por via da tortura alimentar. Na ocasião, fui muito atacado por sustentar que, ao praticar a macrobiótica, o sujeito ficava com a aparência de 70 anos, mas disso não passava. Suponho que ainda devem haver praticantes soltos por aí, embora seguramente evitem passar pela porta do São João Batista à noite, a fim de não serem abatidos a estocadas de madeira no coração.

Resta o delicado aspecto da malhação, sobre o qual há mais teses do que sobre o marxismo antigamente. Deve-se malhar, é a unanimidade, assim como acabar o capitalismo era unanimidade dos marxistas. Mas, como em relação à ideologia, aí cessa a harmonia, porque os teóricos divergem em cada minúsculo pormenor da malhação.

Às vezes vejo amigos e amigas minhas — eis que todo dia há uma matéria sobre malhação nos jornais de tevê — contando as horas diárias a que se entregam às mais exóticas contorções e a aparelhos que seriam rejeitados por Torquemada como excessivamente cruéis. Quem hoje não malha é um marginal. E nos tentam vender, em ofertas mirabolantes pela tevê, uma tal quantidade de tralhas que nos transformarão em seres eternamente sadios, sem estresse e sem problemas, que, se comprássemos tudo, íamos ter de morar num galpão do cais do porto.

É a qualidade de vida, me explicam. É óbvio que não se deixa de morrer, mas se vive mais e com muito melhor qualidade de vida. Qualidade de vida como, cara-pálida? Comendo palha, sem beber, sem fumar, sem comer doce, sem perder noite, aplicando cremes e loções várias vezes ao dia, sem isso, sem aquilo (e aquiloutro também, de acordo com um médico que apareceu uma vez na Bahia, afirmando que o homem é programado para ter quatro ou cinco orgasmos em toda a vida, pois mais do que isso dá câncer na próstata e debilidade mental), dedicando enorme parte da existência a escovar os dentes e o resto a preocupar-se com eventuais transgressões.

Que me perdoem a insensibilidade, mas dispenso essa qualidade de vida e prefiro morrer doente mesmo a esticar as canelas em perfeita saúde.

– João Ubaldo Ribeiro

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