Protesto!

Atirar um pau num gato pode ser uma ação preventiva (ninguém sabe o que o gato iria fazer com a dona Chica) ou a manifestação precoce de um instinto assassino na criança, que deve receber orientação psicológica antes de ter acesso a armas mais sofisticadas.

Existe uma campanha para revisar as letras de canções infantis que vêm sendo cantadas há anos sem que os responsáveis pelas crianças se deem conta do seu conteúdo. O caso mais notório é o do gato atingido por um pau, que não morre, como era a intenção de quem atirou o pau, mas dá um berro que faz dona Chica dimirar-se-se e presume-se foge da cena, traumatizado. Sabe-se pouco sobre a origem da canção e a história por trás da sua letra.

Atirar um pau num gato pode ser uma ação preventiva (ninguém sabe o que o gato iria fazer com a dona Chica) ou a manifestação precoce de um instinto assassino na criança, que deve receber orientação psicológica antes de ter acesso a armas mais sofisticadas. De qualquer maneira, a canção revela um perturbador descaso pelos sentimentos de outro ser, por mais antipático ou atrevido que este seja, e por mais pelos que solte nos sofás, e é um péssimo exemplo para mentes ainda em formação.

A canção Atirei um Pau no Gato sobreviveu sem ser examinada todos esses anos porque nenhum gato pode protestar. Como representante da espécie, farei o possível para que o mesmo não aconteça com outro animal de sangue quente rotineiramente vitimado por impropérios e projéteis verbais mais contundentes do que paus, em canções infantis. Refiro-me aos avôs. Na condição de neo-avô, tenho tido contato frequente com essas tentativas de ridicularizar a categoria, fomentando o desrespeito à autoridade e o escárnio aos mais velhos e ameaçando o tecido social e os valores tradicionais da família.

Basta um exemplo do que se escuta por aí, muitas vezes cantado por crianças que mal começam a falar e só repetem o que ouvem:

Eu vi uma barata na careca do vovô e quando ela me viu bateu asas e voou.

Notem a insídia mal disfarçada pela singeleza do verso. Em primeiro lugar, a sugestão de que todo avô é, por definição, careca. Mesmo os que, como eu, ainda têm mais de 17 fios na cabeça e portanto não ultrapassaram o limite oficial da calvície. Outra sugestão infamante é a de que o vovô, de tão desleixado e/ou alienado, não notaria a presença de baratas passeando pela sua cabeça. Que dependeria de netos que fizessem voar as baratas para não dar vexame em ocasiões sociais e não ouvir piadas na rua sobre sua higiene pessoal e sua sanidade. Ainda somos perfeitamente capazes de detectar baratas na nossa própria cabeça e enxotá-las com nossos próprios meios!

Mas há mais. Uma versão agravada da mesma letra leva o desrespeito às raias da injúria. Segundo esta versão, localizou-se uma pulga na cueca do vovô, o vovô deu um pum e a pulga desmaiou. O vovô deu um pum e a pulga desmaiou! Desde quando avô tem pulga na cueca? Desde quando avô dá pum? A que ponto chegamos, quando se recorre até a flatulência hipotética para denegrir aquele que deveria ser apenas objeto de veneração? Em nome da classe, protesto.

Luiz Fernando Veríssimo

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